A magia e a reverência da Festa da Lanterna em nossas vidas
Elisa Rodrigues
A magia da festa Quando ainda éramos do maternal e, incrivelmente, isso não faz muito tempo, participamos de nossa primeira Festa da Lanterna. Naquela ocasião, estávamos mais ansiosos que nossa pequena Helena. Também, pudera! Passamos semanas acompanhando da varanda, da janela e em conversas com a materna professora de nossa filha, o período de preparação que antecipava a festa. Foram dias de introspecção, de reflexão, de uma atmosfera que se expandia e nos tomava, enchendo-nos de esperança.
Chegado o dia nos aprontamos com muitas roupas para enfrentar a noite fria que se aproximava. Nossa pequena Helena ainda não entendia bem o que acontecia, mas nós estávamos cheios de expectativa para vermos a menina da lanterna e acompanhá-la na sua busca pela luz. A menina chegou alegre como sempre, balançando a sua lanterna à frente da procissão de bichos, da velha senhora costureira, do bom sapateiro, da irrequieta menina com sua bola e dos astros celestes. A representação fez-nos imergir naquela bela narrativa de alguém que após ter perdido sua luz, ter percorrido longa jornada para alcança-la sem, contudo, ter sido ajudada pelos seus pares, retorna pelo mesmo caminho, encontrando as mesmas faces,
agora, entristecidas e pálidas na escuridão do egoísmo. A despeito do que aconteceu, a menina não se furta de ajudá-las oferecendo generosamente a luz que alcançara. Ao compartilhar a luz de sua lanterna, todos se iluminam e seus semblantes recuperam o brilho perdido outrora.
Essa narrativa plena de sentido e de força, revestida de magia e esperança é anualmente repetida nas escolas de Pedagogia Waldorf. Isso ocorre a cada ano a fim de nos lembrar de nossa finitude. Ajuda-nos também a refletir como solitária e vazia pode ser uma vida, se vivida no egoísmo. A menina, entre outras coisas, aponta para a possibilidade de sermos, a despeito da dureza dos dias, solidários e fraternos em nossas relações. Ela nos ajuda a pensar que um pontinho de luz pode fazer diferença na imensidão escura, como o próprio Jesus teria dito um dia, afirmando que uma candeia não pode ser escondida e que o sal faz imensa diferença na comida, retirando-lhe o aspecto de insossa.
Anualmente, a vivência dessa festa nos alimenta e nos preenche de sentido e de força para que possamos seguir com nosso cotidiano e nossos afazeres. É uma festa da escola, é a festa de nossos filhos e filhas e é, especialmente, uma festa para a reunião da comunidade formada pelos professores, pais e educandos. Ocasião em que nosso coletivo se fortalece e ensina aos pequenos com a beleza dos gestos e da devoção, a serem fraternos e solidários.
Reverência e devoção Nossa professora materna nos ensinou quando chegamos à escola, que a festa da lanterna é alimento para o
espírito. Já havíamos entendido que o envolvimento nas atividades escolares, que a participação nos eventos e que nossa presença “dentro” da escola é o que lhe dava ânimo e fôlego para continuar existindo. Mais do que isso: era o que ensinaria nossa própria filha que o processo de crescimento, de amadurecimento e de aprendizagem requeria conhecimento de cada fase, respeito pelos limites e abertura para a novidade. E aprendemos que tal processo transcorreria naturalmente, sem grandes esforços, sem antecipações, mas com reverência.
A palavra reverência é algo que de imediato lembra religião e por isso pode gerar algum desconforto em algumas pessoas. Não há como negar a relação entre uma e outra, mas o sentido de reverência a que nos remetemos quando falamos da educação de nossos filhos e filhas e, de toda a rotina que os envolve na escola, não pretende reificar nenhuma religião especificamente. Trata-se da reverência como atitude de respeito, de atenção, de acatamento. É algo como a aceitação pacífica e benévola de algo que se revela para nós.
Diante o desenvolvimento de nossos pequenos e pequenas, quantas vezes paramos para simplesmente reverenciar o presente que eles são? A gratuidade de podermos reaprender a admirar o belo, o grande e o infinito das coisas que não sabemos?... Aí é que faz algum sentido a primeira relação que fiz entre reverência e religião: algumas pessoas religiosas têm por costume reverenciarem a grandeza da criação, a delicadeza de uma pétala de flor ou o aroma de um manjericão. Não precisamos ser religiosos para saber que essa atitude de respeito é positiva e necessária, a fim de que nossa atitude diante o outro, mesmo que diferente de nós, seja de respeito. Uma atitude tão saudável, que quanto mais ampliada, mais bem causaria.
A reverência se completa na devoção, quando dedicadamente nos entregamos ao que fazemos: para a hora do café com nossos filhos e filhas, ao fazer de um bolo, ao trabalho no escritório ou na sala de aula, na leitura de um texto e, finalmente, ao calendário da nossa escola, que não é apenas um roteiro de atividades, mas a oportunidade de juntos celebrarmos o crescimento de nossos filhos e filhas. A oportunidade de juntos comungarmos da beleza que é vivenciar novamente a infância e com isso reaprendermos a admiração, a curiosidade, o delicioso espanto do novo!
Nós e a escola Na verdade não deveria existir essa divisão: nós, os pais e, a escola, lugar de aprender, acumular saberes e se preparar para o futuro. Não se trata apenas disso. Na verdade, se fosse somente isso, poderíamos procurar outra instituição escolar. Nós e a escola devemos ser uma mesma coisa, devemos caminhar na mesma direção, devemos desejar coisas semelhantes e, em prol dessas motivações, nos mobilizar para alcançá-las. Certamente, esse caminhar não pressupõe a homogeneidade. É natural e desejável que sejamos diferentes, justamente para que possamos aprender “a viver com”. Ouvir o outro, não significa termos que mudar, mas apenas ouvir para tentar compreender seu ponto de vista.
Contudo, para que sejamos uma comunidade é necessário que algo nos una: um desejo comum, uma expectativa, um objetivo. Penso que esse algo pode ser o desejo que temos de que nossos filhos e filhas ao crescerem aprendam mais do que conteúdos, tenham mais do que atividades pedagógicas e sejam mais do que recipientes passivos de informação. Penso que esse algo é o desejo, às vezes, não muito claro, que sejam crianças, adolescentes e adultos seguros de si, que brincaram como crianças, se rebelaram como jovens e se tornaram adultos felizes na maturidade.
Penso que esse algo tem relação com o desejo de que nossos filhos e filhas possam brincar, se sujar, se frustrarem, se alegrarem, adoecerem e se recuperarem. Se é assim, então, temos um projeto em comum e isso nos faz uma comunidade. Como grupo que tem coisas em comum é desejável que saibamos olhar para o outro e reverenciá-lo, como anualmente a menina da lanterna nos ensina: a despeito de todas as diferenças. Mesmo que nem sempre gostemos das mesmas comidas, dos mesmos livros, dos mesmos passeios, das mesmas roupas. O exercício da reverência deve nos motivar a procurar a mediação, a concessão, a reinvenção.
Já não somos tão pequenos. A Escola Paineira Waldorf está crescendo e devemos crescer a cada dia mais para que nossa pequena luz possa iluminar os arredores. Faremos isso juntos e veremos ainda mais frutos dessa paineira. Por fim, uma confissão. Meu desejo é que possamos nos referir um ao outro como “todos” pais e mães Waldorf, independente de nossas diferenças, pois o aquilo que nos une é mais belo e mágico do que aquilo que nos diferencia. Certamente, para que isso ocorra, eu, meu companheiro amado, minha filha, você, os filhos e as filhas, os professores e professoras, a coordenação pedagógica, o conselho de pais, a direção, “todos” nós, deveremos estar atentos ao nosso projeto, discutindo-o e refazendo-o quando necessário, mas, sobretudo, cuidando para que em nossa jornada pela luz, não nos deixemos levar pelos excessos e pelos exclusivismos. Quando optamos por essa escola, escolhemos um projeto. Os projetos podem mudar, mas não deveriam se perder. Essa consciência necessita ser alimentada e podemos fazer isso conjuntamente, nos encontros, nas reuniões, nas conversas no pátio, nas varandas. Que nessas ocasiões possamos partilhar o que nos une, acolher as “novas famílias” e integrá-las naquilo que nos une mágica e reverentemente.
21 de junho de 2013